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Por meio do curta-metragem "Desguardar" (2020), o artista Ed Borges resgata a sua história e a de sua mãe

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Por Beatriz Rabelo

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“Vamos, Eulália, fale de uma vez com quem vai ficar a minha história? E para onde vão seguir os sonhos, que tanto prezas? Acaso existiria um só mortal autorizado a recolher as histórias dos mortos enterrados à sombra de árvores sem memória?”, assim perguntou o imigrante Madruga para a esposa à beira da morte, no livro “A República dos Sonhos”, da escritora brasileira Nélida Piñon. Depois de anos com suas vidas compartilhadas, a dor pela perda da companheira era também o luto pela principal testemunha de sua vida. 

 

Com uma perspectiva similar a essa, o artista Ed Borges compreende que falar de Fortaleza não é apenas tratar sobre seus lugares, seus eventos em tempos antigos ou mesmo sobre figuras que modificaram a malha urbana. Para ele, também é preciso questionar sobre a memória em uma perspectiva mais reduzida. Voltando o foco para sua própria linha do tempo, pondera sobre os percursos que gerações abriram para que hoje pudesse estar onde está, considerando a diversidade de sujeitos e grupos, desde os antepassados da própria família até o grupo de pessoas transexuais, travestis e negras que lutaram em busca de igualdade. 

 

Como Edla e Juliana, que estenderam o tecido da linha do tempo do teatro cearense, descobrindo os vazios e as ausências de fios narrativos, também nesta sessão, Ed desenrola as tramas de sua existência e passado. Ao fazê-lo, consegue recordar as teias que costuram os diversos eventos ocorridos no espaço-tempo.

 

Ali está o caderno que aprendeu a escrever e as fotografias que foram espalhadas pela casa. No entanto, quando começou a abrir o tecido da lembrança em busca de acontecimentos mais antigos — do tempo da mãe, da avó ou bisavó — percebeu as brechas e os vazios de histórias que deveriam estar ali, mas que foram perdidas ou propositalmente apagadas por outras pessoas.

 

Para alguns sujeitos de Fortaleza, o tecido da lembrança segue conservado mesmo após séculos, sendo possível resgatar os nomes de bisavós e tataravós, seus deslocamentos realizados entre o Brasil ou até para além mar. Enquanto outros, como indígenas, negros e integrantes da comunidade LGBTQIA+, tiveram o tecido arrancado de suas mãos e rasgado, sendo difícil descobrir o que ocorreu entre os buracos presentes nos entrelaçamentos de fios

 

Em meio aos registros que sequer podem ser resgatados, Ed busca encontrar caminhos entre essas brechas para criar novos entrelaçamentos. Com olhar crítico e respeitoso, costura outras narrativas que fogem do lugar-comum da violência e do abandono e que honra seus mortos e antepassados, responsáveis por abrir os caminhos para que chegasse onde hoje está.

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Ed Borges

Por meio da produção Desguardar (2020), o pesquisador e artista Ed Borges resgata o episódio de Meningite ocorrido em sua infância para compreender que há pedaços da narrativa de sua família essenciais para entender quem é e de onde vem

Por Beatriz Rabelo

O processo de questionamento sobre a própria história quase sempre aparece em alguma fase do crescimento. Seja durante a infância, quando uma professora pede a construção da árvore genealógica ou na adolescência, quando um jovem começa a questionar seu lugar no mundo. Independente do período, algumas perguntas sobre as próprias origens costumam ser levantadas. De onde venho? Quem eram meus familiares? O que faziam os meus pais, avós, tataravós? Que caminho devo seguir?

 

O movimento de olhar para trás, em busca da história dos antepassados, levanta a compreensão sobre narrativas tecidas ao longo de décadas, que foram carregadas até a geração atual. Foi motivado pelo desejo de olhar para o passado a fim de ver o que esteve ao seu redor com uma outra visão que o pesquisador, viado*, negro, Ed Borges, 29 anos, se deparou com inúmeras lacunas ao tentar rastrear sua linhagem familiar. 

 

“Eu pouco sei sobre a minha origem. Eu pouco sei quem são meus avós, de onde eles vieram, o que eles faziam”. Do que seguia presente no seu cotidiano, eram os pequenos símbolos marcados por grandes significados, como as fotografias de sua infância expostas na parede da casa e o caderno de receitas da mãe, onde Ed aprendeu a escrever.

Durante a graduação em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2017, o artista já graduado em jornalismo realizou um movimento mais concreto de efetivar o registro da própria história. Na época, produziu o filme “Açúcar Queimado”, retratando um episódio de doença da sua infância, quando foi diagnosticado com meningite e teve uma experiência quase fatal. 

 

“Só que como eu tinha dois anos, eu não me lembrava de quase nada. Eu lembro porque está na minha pele, eu carrego isso na memória. Apesar de ter sido o corpo que passou por essa experiência de adoecimento e quase morte, foi minha mãe quem vivenciou as dores e o entendimento disso”.

 

Durante a realização de "Açúcar Queimado”, buscou fazer as pazes com seu próprio corpo e com as cicatrizes deixadas pela doença. No processo de investigação da origem de suas marcas, realizado por meio de conversas com sua mãe e seu irmão, compreendeu que o resgate da própria história só é possível ocorrer em uma coletividade.

“Justamente por todos esses esgarçamentos de memória, por todos esses buracos, você só consegue fazer esse movimento de resgate, se você também tiver alguma aliança, alguém que transmita aquilo que você não saiba”.

O que era para ser uma história sobre sua doença gradualmente se transformou em um curta-metragem sobre memória, sua mãe e a história de sua família. No entanto, foi somente três anos depois, em 2020, que Ed resgatou essa produção a fim de se aprofundar nela.

 

Quando voltou a morar na casa dos seus pais em meio à pandemia de Covid-19 no Ceará, decidiu resgatar "Açúcar Queimado”, após tanto tempo deixado na gaveta. O filme “Desguardar” se fez, então, como “uma recostura da memória, só que agora de uma nova forma, para também tentar entender como eu posso ocupar esse lugar de artista”, detalhou Ed. 

 

Ao longo de 17 minutos, o jovem volta seu olhar para o passado a fim de “desenhar uma linha de fuga para um futuro à vista”. Por meio do audiovisual, questiona seu espaço como artista, dividindo o curta em sete partes:  1. espiralar; 2. refazer; 3. água-arder; 4. mel-queimar; 5. soterrar; 6. amarronzar, e 7. desesquecer. Em cada uma delas, mistura relatos de sua mãe, compartilha fotos de sua infância e realiza ponderações sobre seu lugar enquanto artista e pessoa negra no audiovisual e na história. 

 

Como se convidasse o público a sentar em um banco de madeira para ouvir sua narrativa, Ed cuidadosamente constrói uma trama audiovisual que mescla vivências individuais e coletivas. O curta abre um espaço em que o pesquisador pode “inventar para existir” e é nessa produção que se descobre “eco de quem sobreviveu ao fogo do esquecimento”.

*Ed Borges não utiliza a palavra viado como xingamento, mas como lugar de orgulho e fluido entendimento da sexualidade e gênero. Com o uso do termo também em espaços institucionalizados, busca acrescentar outros significados e potências para o termo.

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"A palavra viado é muito dita para mim na rua, só que quando eu aproximo ela da palavra pesquisador, causa uma estranheza e geralmente causa uma não aceitação. E ai vem a pergunta, “Ah, então na rua sou xingado com essa palavra, mas quando eu quero empoderar essa palavra, quando quero fazer uso da ferramenta da autodefinição, que é super importante para pessoas pretas, não posso?"

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Foi no caderno de receita da mãe que o artista Ed Borges aprendeu a escrever. Foto: Reprodução/Curta-metragem "Desguardar"

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OS VAZIOS NA HISTÓRIA COLETIVA

Apesar de apontar que parte da existência dessas lacunas em sua história se deve a sua dinâmica familiar, em que haviam poucas conversas sobre o passado, percebeu que “existiam buracos, lacunas que eu não conseguia preencher mesmo com esse diálogo com a minha família. E eu não entendia muito bem, só depois que fui entender que isso é uma questão coletiva”.

 

Foi por conta dos debates sobre raça e, principalmente, das partilha com outras pessoas racializadas, que veio a compreensão de que a comunidade negra, assim como a indígena e outros grupos minorizados, tiveram seus percursos marcados pela colonialidade, “em que ativamente foram apagados arquivos do período da escravatura e os registros de quais famílias fazendeiras eram ‘donas’, entre muitas aspas, de quais pessoas negras escravizadas”, apontou ao se referir à queima de arquivos de documentos à escravidão, em decreto assinado pelo ministro da Fazendo Ruy Barbosa, em 14 de dezembro de 1890, o ministro da Fazenda.

 

Segundo o jornal “O Estado”, foram publicados trechos dessa ordem em 19 de dezembro de 1890, que solicitava o envio de documentos para a capital a fim de realizar a "queima e destruição imediata deles". 

 

Com isso, parte da memória dos descendentes desse grupo também se perdeu em meio às chamas do apagamento, retirando deles inclusive o direito de reivindicar indenizações no presente. “Há um esforço de uma política institucional de apagar memórias e é por isso que eu tenho essas lacunas, e não só sou eu. São ‘n’ pessoas racializadas”.

 

“O esquecimento é um instrumento político de colonização”, afirmou ao explicar que essa visão se tornou ainda mais evidente quando, em meio ao seu processo de pesquisa acadêmica, resgatou o pensamento do historiador de arte alemão Hans Belting, que trata sobre a construção de imagens exógenas e endógenas. 

 

Enquanto as imagens endógenas habitam a mente, através de sonhos, recordações e memórias, as exógenas tratam sobre as imagens em mídias artificiais, como estátuas, pinturas e videoclipes. Ambas se conectam e modificam.

“Ele fala que um instrumento de colonização espanhola foi a destruição das imagens nativas. Qual intento disso? Ao destruir as imagens mentais, você destrói as memórias. E aí, no lugar, você coloca as suas imagens e cria outras memórias. É um instrumento real de colonização e faz parte de um projeto. Quando a gente fala de projeto de colonização, eu não sei se as pessoas entendem o peso que isso significa. Mas um projeto é uma série de tecnologias, muito sofisticadas, que estão há 500 anos em desenvolvimento e aplicação para fazer com que o projeto colonial dê certo. Mas assim, estou falando tudo isso, mas também não significa que não existam possibilidades de resistência”.

É por isso também que Ed percebe que toda produção carrega um teor político e histórico, mesmo aquelas que afirmam não ter. “Quando você faz um filme só com pessoas brancas, ali é uma ação política, mesmo que você esteja dizendo que filme não é político. Então todas as obras de arte vão ter essa ação política”. 

 

O movimento crítico e de resistência precisa justamente pensar sobre quais narrativas e projetos políticos o produtor audiovisual deseja deixar ecoar pela cidade. Quais são as histórias que poderão construir outras possibilidades de presente e de futuro?  “Tudo o que a gente produz é um registro no tempo, é um registro no tempo e no espaço, e isso é o que constrói a história”. 

CRIANDO NOVOS FUTUROS ENTRE AS BRECHAS DO TEMPO

Nesse cenário de apagamento e de resgates das narrativas individuais e coletivas, Ed vê que o cinema também tem um papel importante no movimento de manutenção da memória. Apesar de não acreditar que o audiovisual é capaz de recuperar tudo, “porque tem algumas que de fato foram perdidas”, ele vê essa ferramenta como capaz de criar outras narrativas. 

 

Baseado na escritora e artista nordestina, preta e “bicha não binária”, como se auto define Jota Mombaça, entende a existência do “poder das ficções e das ficções de poder”, que enquanto há um monopólio da violência na mão do estado e da figura do homem vil como ficção de poder, ao mesmo tempo existe o poder das ficções. “É a partir de outros estudos de mulheres pretas sobre ficção científica que Jota Mombaça vai entender que a ficção é o que tem o poder de inaugurar outros mundos”.

 

Imaginando um tecido com diversos rasgos, é nos vazios que Ed vê a potência da inventividade, são neles que pode-se atuar para produzir outras histórias, inclusive de memórias do que se perdeu.

“Tem uma artista local, chamada Pedra Silva, que resgata que ‘nós somos os ancestrais do futuro’. Algumas pessoas negras falam muito isso, mas foi com ela que ouvi pela primeira vez. E essa é uma frase que a gente fica pensando e repensando, porque é muito forte. Eu não consigo explicar, mas quando ela fala ‘nós somos os ancestrais do futuro’, significa que nós seremos lembrados e a gente tem a possibilidade de produzir memórias de agora. E eu acho que o audiovisual, o cinema e todas as outras artes, tem esse potencial inventivo de criação”.

Após esse momento, Ed parou alguns segundos, refletiu mais uma vez o peso dessa afirmação e acrescentou que é em pessoas como Jota Mombaça, Pedra Silva e a fotógrafa Tamara Lopes que enxerga seus ancestrais do futuro. “Quando vejo essas pessoas produzindo entendo qual é a potência do audiovisual. É criando e recriando essas memórias do passado que novas são construídas”.

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