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Dirigido pelo cearense Pedro Diógenes, o filme “Pajeú” (2020) retrata a história de esquecimento e soterramento do riacho que possibilitou o nascimento de Fortaleza, misturando a fantasia e o documental para levantar a importância da memória

Por Beatriz Rabelo

Os primeiros caminhos desbravados em Fortaleza tiveram início a partir do riacho Pajeú. Foi saindo da foz localizada ao lado do Forte Schoonenborch que as águas guiaram o crescimento e a ocupação da capital cearense. A importância desse símbolo, atualmente soterrado em diversos pontos por vias de concreto, marca a pesquisa de muitos historiadores, como o membro da Academia Cearense de Letras, Dr. Raimundo Girão, que escreveu uma breve história da cidade no livro “Geografia Estética de Fortaleza”, publicado pela primeira vez em 1959. 

 

As citações ao riacho Pajeú aparecem logo nos primeiros capítulos. Depois de resgatar o pacto de Tordesilhas de 1494 e as genocidas expedições europeias para o continente americano, relata que foi em fevereiro de 1500 que o espanhol Vicente Yanez Pinzón “cavou o chão do Brasil e ergueu aos ventos americanos a cruz assinaladora de sua passagem perto da embocadura de um pequeno rio, o Pajeú”. 

 

Foi, então, entre as fozes do rio Pacoti e Ceará, com o Cocó e Pajeú ao lado, que as narrativas pós-invasão europeia tiveram início, assim como os acontecimentos que “enredam quase de modo exclusivo a história da colonização do Ceará até o fim do século XVII”. No livro, Raimundo Girão ainda detalha que a cidade de Fortaleza se origina a partir da construção do Forte Schoonenborch, levantado pelos holandeses na enseada do Mucuripe.

 

Porém, mesmo o riacho tendo uma influência central para o nascimento de Fortaleza, são poucos os moradores que se recordam de sua existência. Foi em decorrência do incômodo por tudo aquilo que se perde no decorrer do tempo que o diretor de cinema Pedro Diógenes, 37 anos, decidiu se aprofundar na história do riacho. Nesse processo de busca, deparou-se com a pesquisa da artista e arquiteta Cecília Andrade, responsável por uma dissertação de mestrado sobre o riacho Pajeú. A partir desse encontro marcado por partilhas, a produção do longa-metragem Pajeú teve início. 

 

“Foi o riacho que possibilitou que Fortaleza fosse fundada. Fortaleza nasce nas margens do Pajeú, então foi por causa dele que a cidade nasceu, e esse riacho foi completamente esquecido e soterrado tanto geograficamente, quanto no nosso cotidiano, na nossa história. Então ele simboliza muito isso, porque se um processo de urbanização consegue esquecer o riacho que possibilitou que ele nascesse, quantas outras vidas, possibilidades e cidades foram apagadas?

Foi optando por misturar o documental com a ficção, que Pedro construiu um filme capaz de mergulhar nas águas do passado para resgatar a memória do riacho, da cidade e de seus habitantes. Ao longo dos 74 minutos de produção, colocou-se para dissecar as origens de um dos elementos centrais do crescimento da cidade e apresentar os impactos causados pelo soterramento gradual dessas águas.

 

O público que acompanha a narrativa visceral vê o atravessamento do encontro da protagonista Maristela com uma criatura que emerge das águas do riacho, de aspecto místico e marítimo. A figura coberta de algas e resíduos sólidos parece carregar o peso do divino e de uma alma atemporal. Gradualmente, a jovem começa a ver a figura sempre na tênue linha entre o concreto e o onírico, sentindo as dores do esquecimento e do sufocamento vividos pelo riacho.

 

Por conta dos pesadelos e da inquietação causados pela insistência da imagem, a jovem decide iniciar uma pesquisa sobre o riacho, sua origem, seus caminhos em Fortaleza até mesmo o seu desaparecimento. Nesse processo, traça diálogos com colegas, personagens fictícios da trama, e também com o jornalista, colecionador e pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, conhecido como Nirez. 

 

Desde o início, não havia a pretensão de abarcar a história completa. “Acho que joga mais uma curiosidade. Talvez algumas pessoas que acabaram de ver o filme se interessem mais sobre o riacho ou sobre outras coisas que estejam próximas. Então talvez seja um despertar mais próximo do cotidiano mesmo”. 

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Com uma densa pesquisa sobre o Pajeú, a protagonista Maristela resgata o curso do riacho. Foto: Reprodução/Filme Pajeú

TENSIONAMENTOS NA CIDADE

Para Pedro Diógenes, o Pajeú sempre representou um exemplo da falta de memória e também da ação da especulação imobiliária em Fortaleza. Essa ação de esquecimento do próprio passado carrega um peso para as pessoas do presente, como o distanciamento com a cidade, suas ruas e possibilidades. “Acho que não é à toa que, por exemplo, nos bairros de classe média, classe média alta, se ande tão pouco nas ruas”. 

 

Casas são derrubadas para a construção de muros, guaritas, estacionamentos e farmácias. Árvores são retiradas do meio fio para ampliar avenidas cinzentas, deixando cada vez menos espaço do pedestre e tornando o ambiente pouco habitável. Com essas mudanças, são reduzidos também os locais de convivência, em que existe a possibilidade de se criar outros ritmos e vivências na malha urbana. 

 

“Imagine o quanto as margens de um riacho são agradáveis para a convivência pública e para a convivência com a natureza e como tudo isso vai modificando a cidade e também essa relação com a memória.  A gente não sabe muito bem que Fortaleza é essa que a gente vive, durante o filme era muito nítido como pouco se sabe sobre o Pajeú”

Considerando essa realidade de histórias vividas e esquecidas, Pedro vê o cinema como uma potente ferramenta de manutenção da memória e resgate de acontecimentos passados. Desde o início de sua trajetória, tem construído narrativas atravessadas pela capital cearense, pelos corpos que a habitam, pelo esquecimento e pela especulação imobiliária. De 2008 para cá concentra produções como Fort Acquario (2016), Vista Mar (2009), Retrato de uma paisagem (2012), e Inferninho (2018).

 

“Além de um cenário, Fortaleza é tema de boa parte dos meus filmes. Dentro desses temas que a cidade me desperta, tem a questão da memória, ou da falta de memória de Fortaleza. Sempre foi uma coisa que me inquietou”, detalha.

 

Essa inquietação por vezes acaba extrapolando as telas e tocando também os espectadores. Em sua experiência com o Pajeú, por exemplo, o diretor teve retorno de pessoas que relataram vivências pessoais após a exibição do filme. “Foram comentários como ‘na minha cidade também tem um riacho e aconteceu algo parecido, aqui na minha cidade tem alguma outra coisa parecida’, então acho que as pessoas acabam ligando muito o filme com alguma coisa do seu cotidiano ali próximo”.

 

Com tudo aquilo que afeta o sujeito, através das vivências pelo olhar do outro nas telas de cinema, há sempre a possibilidade de uma transformação. “Eu acho que isso é muito potente, são muitos sentimentos que o cinema consegue causar na gente”, ponderou o produtor audiovisual que teve a vida completamente atravessada pela sétima arte. Apesar de compreender que as mudanças não ocorrem de forma imediata, coloca que ainda assim acredita na potência do cinema em modificar a realidade.

 

“É lógico que isso não vai ser uma mágica, mas eu acho que os filmes, junto com as nossas experiências, junto com os encontros que a gente vai tendo na vida, vão mudando a gente, vão nos ajudando a escolher os nossos caminhos”.   

 

E essa assim, de maneira colaborativa e pesquisada, Pedro segue construindo as narrativas do presente, para que a geração do futuro possa saber que um dia houve um riacho chamado Pajeú, não só para saber que essas águas estiveram presentes na construção de Fortaleza, mas para compreender que essa memória deve permanecer viva como um compromisso histórico para os que foram e os que virão. 

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A artista visual, designer, arquiteta e urbanista Cecília Andrade realizou sua pesquisa de mestrado sobre o riacho Pajeú, criando um aplicativo que possibilita andar pela cidade e acompanhar o percurso das águas

Por Beatriz Rabelo

Tendo contribuído para a produção do filme Pajeú, a pesquisadora e mestre pelo Programa de Pós-Graduação de Artes da Universidade Federal do Ceará (UFC), Cecília Andrade, explica como surgiu o seu interesse pelo riacho Pajeú e o processo de elaboração de sua dissertação do mestrado. A partir de sua pesquisa, foi criado o aplicativo "Excursão Pajeú" e, posteriormente, organizada uma exposição sobre a temática no Centro Cultural do Banco do Nordeste do Brasil.

 

Durante a conversa, Cecília também traz ponderações sobre a necessidade de registros para manutenção de memórias coletivas e individuais. Após anos de pesquisa sobre o riacho Pajeú, considera interessante o movimento de tentar compreender os processos de esquecimento e lembrança dos símbolos de uma cidade.

ATRAVESSAMENTOS URBANOS: EM QUE MOMENTO SURGIU SEU INTERESSE PELO RIACHO PAJEÚ?

 

CECÍLIA: Conheci o Pajeú como moradora de suas imediações, em 1997, quando uma chuva de 280 milímetros parou a cidade de Fortaleza. Foi a maior chuva até hoje registrada na capital. Ruas viraram rios velozes, depressões tornaram-se lagoas, grandes trechos da cidade viraram ilhas. Muitos sofreram transtornos; alguns perderam tudo. A dois quarteirões do prédio para onde eu tinha me mudado, a avenida tornou-se um enorme corpo d’água que arrastava com sua capa preta uma torrente de lixo. 

 

Algumas pessoas usavam caiaques, pranchas e jet-skis, produzindo um parque aquático surreal em plena Avenida Heráclito Graça. Ônibus flutuavam, carros afundavam e a piscina semiolímpica do Colégio Capital, onde eu iniciara a prática de natação, foi engolida por um mar de água negra, densa, oleosa... 

 

Aquela imagem me afetou profundamente. Esse primeiro contato com o riacho foi uma experiência chocante, estranha, engraçada, triste e absurda, que me acompanhou em sonhos e pesadelos por anos. 

AU: ESSE PRIMEIRO ENCONTRO COM A EXISTÊNCIA DO RIACHO OCORREU HÁ MAIS DE VINTE ANOS. QUANDO SURGIU A DECISÃO DE INICIAR UMA PESQUISA ACADÊMICA SOBRE O TEMA?

CECÍLIA: Descobri na Universidade que aquela rua, ao menos em alguns trechos, era, sim, um rio. E descobri que não era qualquer rio: era o riacho Pajeú, em cuja margem Matias Beck fundou o Forte de Schoonenborch, que nas mãos dos portugueses virou a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Era o rio ao redor do qual nasceu a cidade sem nome da Fortaleza. 

 

Era esse o rio que jazia quase mudo sob a rua; era esse o rio que corria confinado a um caixão de concreto paralelo àquela piscina límpida onde eu nadava. 

"Aquela água preta vomitada pelas bocas de lobo era um sintoma desta cidade que força o esquecimento, que a tudo apaga. À imagem espantosa somou-se um saber desconcertante"

Tocada por aquela imagem e instigada por esse saber, passei a estudar o riacho Pajeú na graduação em Arquitetura e Urbanismo e, sem poder evitar que ele seguisse me atormentando, retomei-o mais de uma década depois em minha pesquisa no mestrado em Artes, que, por fim, virou uma exposição com vários trabalhos em linguagens diferentes.

 

 

AU: QUE RECORTE VOCÊ OPTOU POR REALIZAR NA PESQUISA?

 

CECÍLIA: O principal produto da pesquisa é uma experiência de caminhada guiada por um aplicativo chamado "Excursão Pajeú" que também permite a outros pesquisadores o acesso ao arquivo montado sobre o rio e está disponível para Android. Surgiram posteriormente intervenções urbanas chamadas "Inserções em Sinalização Urbana" e sua transmutação para intervenções digitais "Inserções em GoogleMaps" que estão disponíveis para visita nos locais marcados como Parque Pajeú no mapa da Google em Fortaleza. 

 

Esses trabalhos juntaram-se às caminhadas à pé em grupos guiados "Curto-Circuito Pajeú", aos desenhos, instalações e um vídeo para integrar a exposição também intitulada "Excursão Pajeú", realizada no CCBNB - Fortaleza com incentivo da Lei Rouanet e que foi selecionada para o 2o. Prêmio Select em 2018. Ainda integramos uma edição do "Percursos Urbanos", cujas fotos (de Allan Diniz) seguem em anexo.

 

Em comum os trabalhos desenvolvidos em minha pesquisa sobre o Pajeú tocam na questão do apagamento e tensionam as condições de visibilidade, enunciações e discursos que disputam o imaginário deste rio até os dias atuais. 

 

A dissertação passou em um edital de publicação e está sendo adaptada para lançamento em forma de livro.

AU: QUAL FOI SUA REAÇÃO AO ESCUTAR A PROPOSTA DE PEDRO SOBRE O FILME?

 

CECÍLIA: Quem entrou em contato comigo foi Victor Furtado. Ele me falou do filme e que minha pesquisa de mestrado era um elemento importante na pesquisa da obra. Além das conversas que tivemos, cedi para ele muito material do meu arquivo. Alguma coisa do que emprestei à produção foi até mesmo usada numa cena que mostra o mural montado pela personagem principal em seu quarto. No geral, as pessoas que me procuram para fazer algo a partir da minha pesquisa com o Pajeú têm uma aproximação por demais saudosista, memorialista, ativista ou moralista. 

 

Quando o tom é esse já informo que não estou querendo salvar o Pajeú, não me interessa esse alinhamento e não dou prosseguimento. Não foi o caso com o filme Pajeú. Acho que o filme tem escolhas corajosas, traz o medo, o aterrorizante e o impensado no cotidiano, o apagamento como banal e terrível ao mesmo tempo e faz uma aproximação entre perdas pessoais e coletivas que eu mesma, na minha escrita, quando falo dos conceitos de esquecimento e apagamento, também já tinha tecido. 

 

Na verdade, me vi bastante no filme, o que foi inclusive incômodo. Me senti exposta, pois essa pesquisa é inconcebivelmente pessoal para quem não me conhece, mas fico feliz com a reverberação da obra.

 

AU: QUAL A IMPORTÂNCIA QUE VOCÊ VÊ EM MANTER O REGISTRO DO PAJEÚ E REACENDER A MEMÓRIA SOBRE O TEMA A PARTIR DO FILME?

 

CECÍLIA: Meu interesse é menos no Pajeú e mais nas dinâmicas que fazem esquecer e apagar um elemento nessas dimensões e com sua alegada importância - as políticas da memória e os dispositivos de seu apagamento. Mantendo essa memória, podemos estar atentos a tantos outros apagamentos que continuam acontecendo e mais graves, de lugares, comunidades, acontecimentos. Então, discutir o apagamento do Pajeú é discutir todos os apagamentos.

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