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Gravado em meio à pandemia de Covid-19, o documentário “Doc. Teatro: Mulheres, Cena e Memória” (2021) apresenta de modo afetivo e poético a trajetória artística de quatro mulheres que compõem a história do teatro de Fortaleza

Por Beatriz Rabelo

Existem vazios na história do teatro fortalezense. Essa realidade não demorou a ser percebida pelas atrizes, pesquisadoras e fundadoras da Coletiva Antonietas*, Edla Maia e Juliana Tavares, quando se debruçaram sobre a linha do tempo da construção desse meio artístico no Ceará. Atentas às narrativas do passado, começaram a se deparar com a insuficiência de documentos sobre a memória da atuação feminina no teatro local, inclusive de nomes mais conhecidos, como o da atriz Antonieta Noronha. 

 

Se a busca por registros históricos se torna desafiadora até mesmo quando o foco da pesquisa é a figura de Antonieta, que é popularmente conhecida como a “Dama do Teatro Cearense” e possui um espaço de teatro em sua homenagem desde 26 de maio de 2004 na Rua Pereira Filgueiras, no Centro, quantas outras narrativas não foram esquecidas? Quantas memórias se perderam no decurso do tempo?

 

Motivadas pela urgência de resistir a esses vazios, Edla e Juliana desejavam “fazer algo a partir do apagamento”. Começaram então a estender o tecido das narrativas já construídas sobre o teatro fortalezense, observando quais eram as brechas existentes. A partir do olhar atento ao que já foi produzido, tiveram a compreensão de que os vazios também podem ser plurais. Se existe um apagamento das mulheres no teatro, esse movimento pode ser ainda mais intensificado para aquelas negras e periféricas.

“A gente já não tem uma vasta bibliografia feita por mulheres, quando se pensa nos livros que tratam sobre mulheres, é ainda pior. A gente foi percebendo isso ao longo dos meses. Começamos uma leitura para saber e vimos pouquíssimas coisas. Dentre as informações sobre o início do teatro, temos a presença feminina muito desvalorizada”

Com os registros históricos em revistas, jornais e bancos de imagens conservados por museus, institutos, historiadores e livreiros, ainda é possível realizar o meticuloso trabalho de escavar em busca das referências femininas no teatro Fortalezense. No entanto, há acontecimentos do que passou que já não podem mais ser trazidos para a luz do presente. Parte do tecido temporal seguirá esgarçado, com os fiapos do muito que já não se pode mais resgatar.

 

Nesse entrelaçamento contínuo de fios verticais, horizontais e transversais da história, as pesquisadoras focaram em contribuir no movimento de fazer ecoar narrativas de mulheres que ainda constroem o cenário teatral de Fortaleza. Apesar de compreenderem a relevância social de tratar sobre figuras do passado, elas queriam viver a possibilidade de passar por partilhas através de conversas, deixando que as próprias entrevistadas relatassem as suas experiências, trajetórias, desafios e conquistas. 

 

“A gente queria mostrar mulheres que estão ativas nos seus projetos. Eu nunca vi a Antonieta em cena e agora ela já morreu, então eu acho que é importante falar sobre essas mulheres que estão vivas, para que a gente possa de fato valorizar o trabalho delas enquanto estão na ativas fazendo”, detalha Juliana, ao abordar a decisão final tomada conjuntamente com Edla. 

É então, com a mediação do audiovisual, que somos apresentados para a história de Hiramisa Serra, Herê Aquino, Kelly Enne Saldanha e Marta Aurélia. Cada uma dessas mulheres possuem caminhos já em curso no cenário teatral de Fortaleza, com trabalhos em distintos campos de atuação, seja como atrizes e figurinistas, ou mesmo como cantoras, diretoras e produtoras culturais. 

 

Através do documentário “Doc. Teatro: Mulheres, Cena e Memória”, produzido e finalizado no ano de 2021, acompanhamos a trajetória individual de cada uma, incluindo suas primeiras vivências com o teatro e o modo como constroem resistências por meio da arte. Os relatos orais compartilhados no filme são resgatados também para a construção da presente reportagem, a fim de evidenciar parte das potentes histórias registradas por meio da sétima arte.

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Cenas dos bastidores de produção do documentário "Doc.Teatro: Mulheres, Cena e Memória". Foto: Divulgação/ Juliana Tavares

O TEATRO TAMBÉM TEM ROSTO DE MULHER

O documentário de 63 minutos inicia com a fala da atriz e figurinista Hiramisa Serra, 82 anos. Tendo entrado no mundo da arte por influência do marido, Haroldo Serra, precisou vencer o preconceito do pai para poder seguir com a carreira. “Não foi fácil, porque meu pai era oficial do exército, muito rígido, muito tradicionalista, mas o Haroldo, com aquele jeitinho dele, acabou convencendo eu fazer essa experiência e eu nunca mais sai”, detalha ao relembrar como o fascínio do marido acabou lhe levando para os palcos dos teatros de Fortaleza. 

 

O que iniciou como uma brincadeira descompromissada para acompanhar Haroldo, se tornou uma paixão da sua vida. “Ele era apaixonado por isso. Quando comecei a namorar, acabei caindo na vida, não tinha outro caminho”. O relato acompanhado de antigas fotografias carrega carinho, saudade e divertimento no tom de voz. 

 

O sentimento de afeto também pode ser percebido através do olhar de Hiramisa que por vezes se desfoca, como se na verdade voltasse para si mesma, perdida no relembrar de narrativas mais distantes, que voltam a se tornar próximas à medida que as compartilha com Edla e Juliana.

 

A sensação de resgate das lembranças do tempo de juventude também perpassa a fala da diretora de teatro Herê Aquino. Quando criança, recorda do momento em que policiais militares bateram em sua porta para buscar seu pai. As duras vivências de crescer em meio ao período da ditadura civil militar de 1964, em que havia severas formas de privação de liberdade, moldaram quem se tornou, a trajetória que percorreu e segue influenciando até hoje o teor da produção de seu trabalho. 

 

“Isso não se desvencilha da maneira como eu vejo a vida, todas essas vivências que passam por mim. Apesar de ser triste de se pensar, faz com que eu seja muito forte diante de muitas coisas”. Não se deve esquecer das veias abertas de um país que mesmo após mais de 35 anos desde o fim da ditadura ainda não aprendeu a lidar com o próprio passado.

O teatro iniciado como válvula de escape se tornou o seu modo de estar viva. “Eu não consigo ficar sem, todo dia estou fazendo teatro”. Isso porque quando não está produzindo presencialmente, está escrevendo. Se não está escrevendo, está pensando. Em fluxo constante, trazendo sempre o viés crítico na sua maneira de olhar para o cenário brasileiro. “É perceber sempre que a gente está inserido em algo maior que é a sociedade e que tem um monte de coisa errada e eu vou lutar para que aquilo ali se torne diferente”.

 

Nesse movimento de perceber o teatro como espaço que possibilita abertura para questionamentos políticos e sociais, a atriz e produtora cultural Kelly Enne Saldanha, que sonha em “dominar o mundo” através da arte, constrói de segunda a segunda o teatro de Fortaleza. Com foco no Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), equipamento da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará gerido pelo Instituto Dragão do Mar, sua atuação perpassa a produção do texto teatral, o ensino para crianças e jovens, e até a apresentação de peças. 

 

Foi também na arte que começou a resgatar o fio de sua ancestralidade. Em meio ao processo de produção da peça “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, na qual se discute a criminalização da juventude negra e a violência policial, Kelly conheceu quilombos no Ceará, se aprofundou nas religiões de matrizes africanas e entrou em contato com o Comitê da Desmilitarização da Polícia na Política, “que fez o grupo enxergar muita coisa. Que tem muito mais coisas por trás disso tudo que a gente precisa estar mais atento para enxergar”. 

 

No período da pesquisa, também voltou o olhar para as próprias vivências, precisando relembrar episódios de racismo passados e presentes. “É um espetáculo baseado em muitos fatos reais, foi um processo doloroso porque a gente teve que investigar muitas dores nossas”. As dificuldades vividas na construção de uma trajetória na arte se tornam ainda maiores quando se pensa em recortes de gênero. 

“É um desafio muito grande ser mulher negra dentro da cena cearense. Não só na cena, em tudo. Nada que a gente faz é dado, é conquistado com muita luta, porque o tempo todo a gente tem que ficar provando a nossa capacidade”

O peso das cobranças sobre o papel da mulher pode ser intensificado quando surge também a questão da maternidade. As faltas e ausências apontadas, muitas vezes necessárias para que as mulheres consigam se dedicar a espaços profissionais, são ainda mais apontadas e cobradas pela sociedade. “Ser mulher passa por muitas coisas para que você possa se construir, ser quem você é”, percebe a atriz e cantora Marta Aurélia, também entrevistada para o documentário. 

 

Ao longo de sua trajetória na arte, que perpassa também os conflitos políticos e sociais de um período de reabertura política na década de 1980, precisou atuar não só como resistência ao cenário pós-ditadura militar, como também à misoginia por vezes enfrentada. Em “eterna construção”, não quer ser definida a partir dos outros, mas conseguir definir a si mesma, como relatado durante o documentário. 

 

Após toda a escuta atenta e as trocas realizadas por quase cinco meses, Juliana e Edla realizaram a edição final carregando uma outra percepção sobre si mesmas e sobre as entrevistadas. “Além de ouvir grandes histórias, também conseguimos aprender com cada uma delas, percebemos que o teatro surge na vida dessas mulheres de forma muito particular e diversa, através de um romance, vida política, ou mesmo de um espaço para autoconhecimento”, concluem no documentário. 

POTENCIALIDADES DO CINEMA FEITO POR MULHERES

O cinema e o audiovisual surgem como duas ferramentas essenciais em meio à tarefa histórica e política de conservar a memória. “O cinema permite que a gente possa ter acesso a uma obra por mais tempo”, percebe Juliana, ponderando que, ao contrário de intervenções urbanas ou teatrais realizadas de modo costumeiramente pontual ou periódico, a obra fílmica pode ser consultada sempre que possível, caso tenha uma boa conservação. 

 

No caso do “Doc. Teatro: Mulheres, Cena e Memória”, projeto contemplado pela Lei Aldir Blanc com recurso da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), foi possível compartilhar as histórias de mulheres com trajetórias diferentes para o público de agora, mas também para as gerações que irão surgir. 

“Acho que o cinema, nesse sentido, é muito importante para a preservação. Daqui a 20 anos, 30 anos, as pessoas vão poder assistir isso daqui, vão poder ver essa história. Porque a gente queria mostrar o rosto dessas mulheres”

A alegria de contar um pouco sobre as figuras femininas do teatro de Fortaleza fica visível no modo de falar de Juliana. Com a fala marcada pelo orgulho do resultado final da produção e os lábios sempre à beira de expor um sorriso, explica que construir esse registro documental carregado de poéticas e resistências, deixando que as entrevistadas contassem suas próprias histórias, ainda hoje é um grande orgulho para ambas as diretoras. 

 

“E o fato de ser mulher está totalmente interligado, porque  é uma vivência. Eu acredito que por ser um documentário feito por mulheres, com mulheres, teve um olhar muito diferente”, afirma. Para ela, o resultado da produção seria outro com uma direção masculina. Foi devido à capacidade de compreender profundamente as vivências femininas — que podem ir desde os desafios para a construção da própria carreira até a conciliação com a maternidade — que foi possível trazer um outro tipo de sensibilidade às perguntas, ao modo de filmar e, por fim, de editar. 

 

“Nesses encontros, mergulhamos em nossa humanidade, nos reconhecemos como parte de um todo, de algo muito maior, que ultrapassa as paredes das salas de ensaio. Nós descobrimos agentes sociais com uma coragem potente de transformar o meio que vivemos através da arte”. Esse legado criado por Juliana e Edla agora é compartilhado para as gerações de agora e do futuro.

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