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Como as formações vão além do ensino, sendo fundamentais para o entendimento e a mudança dos próprios contextos sociais dos sujeitos

Por Januele Melo

Por meio das narrativas que saem do papel e tomam forma em som e imagem nas telas do cinema, de televisões e de smartphones, traduzem-se os olhares de pessoas cujas histórias vão além do que elas mostram nessas produções. A trajetória que cada um percorre é única, mas elas se atravessam no percurso do realizador especialmente quando partilham um mesmo cenário: Fortaleza. Vindas de diferentes origens, essas pessoas tornaram-se personagens da narrativa de construção desse campo na cidade, e os seus encontros são como pontos de virada da história que fala sobre um esse setor construído coletivamente.

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A cena audiovisual fortalezense se desenvolve em meio a uma construção coletiva, buscando acolher aqueles que se interessam em produzir e criar narrativas sobre a cidade e as pautas existentes no tecido urbano. Apesar da tentativa de se construir mais aberta para novos produtores e idealizadores, foi principalmente nos últimos vinte anos que esse cenário foi desenvolvido. Se antes, o acesso ao cinema ainda era difícil, hoje, as perspectivas para quem escolhe fazer parte desse setor são mais diversas. Com a existência de cursos e de oportunidades não formais de ensino, moradores de distintas raças e perfis socioeconômicos passam a se integrar nesse novo cenário da produção de filmes, curtas e documentários em Fortaleza. 

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Ao longo desse tempo, foram surgindo equipamentos culturais, como o Centro Cultural Bom Jardim, a Vila das Artes, o Porto Iracema das Artes e a Rede de Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cucas), que foram possibilitando a formação de novos realizadores que colocariam seus diferentes olhares sobre a cidade em suas produções. Para além do fomento à formação nesses espaços institucionalizados, surgiram também iniciativas de coletivos que têm facilitado caminhos para aqueles que desejam crescer profissionalmente no campo do audiovisual.

Um começo para a formação

A partir da criação dos primeiros cursos voltados para o setor audiovisual, o mercado de Fortaleza se abastece de novos profissionais

Se hoje você quer começar a aprender sobre cinema, basta que tenha um smartphone com acesso à internet e, em poucos cliques, encontrará disponíveis muitos cursos online, videoaulas e materiais gratuitos. Agora volte no tempo para 1971. Não existem smartphones nem internet. Para aprender sobre cinema, você precisa optar por outro caminho. Se for autodidata, pode aprender estudando por meio de livros que tratem do assunto. Se tiver oportunidade, pode tentar uma formação em algum espaço de ensino.

 

Nesse contexto, em Fortaleza, surge a possibilidade de estudar audiovisual na recém-inaugurada Casa Amarela Eusélio Oliveira (CAEO). O equipamento cultural da Universidade Federal do Ceará (UFC), vinculado à Secretaria de Cultura Artística (Secult Arte/UFC), passou a protagonizar desde então  um pioneirismo como espaço de formação com cursos de curta duração.

 

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Celebrando hoje seus cinquenta anos, esse espaço foi o começo de um importante avanço para a formação em cinema e audiovisual local. Como a Casa Amarela, outros espaços foram fundamentais para preparar o terreno do audiovisual na capital cearense e, mais do que isso, para possibilitar novos olhares sobre os sujeitos e a cidade e para que novas narrativas fossem contadas. 

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Se antes o cinema cearense era, em grande parte, um retrato da seca do sertão, da vida do sertanejo e das histórias populares nordestinas, agora ele passa a mostrar novas realidades, principalmente urbanas. As lentes, não mais apenas de câmeras fotográficas, agora fazem registros também daqueles que habitam a cidade, que se movem por entre suas vielas e ocupam os espaços que lhes são de direito.

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Retorne agora para a década de 90. A possibilidade de estudar audiovisual em Fortaleza se torna mais plural com a inauguração de um novo espaço que dá suporte de ensino a comunidades. O Alpendre Casa de Arte surge como uma organização não governamental que possibilita o encontro daqueles que buscam fazer e discutir a arte na cidade, sendo inaugurado em espaço físico no ano de 1999 nas proximidades do Poço da Draga. Ali, torna-se ponto de encontro para jovens da comunidade que estão à procura de alternativas de formação para dar rumo à própria trajetória. 

 

Foi exatamente nesse lugar que os percursos de Victor de Melo e Kiko Alves se iniciaram, quando ambos ingressaram em cursos após terem terminado o ensino escolar sem ter a perspectiva de chegar ao ensino superior.  “Foi pra mim a maior escola inicialmente. Imagina um garoto da comunidade do Poço da Draga, ali ainda no ensino médio, sem saber o que fazer. De repente, encontra uma instituição que pense esse suporte. Acho que o Alpendre acabou abrigando uma galera que hoje tá dentro do setor”, conta o realizador audiovisual Victor de Melo, que hoje tem forte atuação no mercado, mas cuja história começa em um contexto de incertezas quanto ao seu direcionamento profissional. 

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Com a necessidade de seguir por algum caminho e enxergando no espaço a possibilidade de garantir um futuro, Victor começou a estudar fotografia e audiovisual no Alpendre. A vivência no lugar se tornou para ele um marco importante de mudança de perspectiva de qual rumo daria à sua história. “Quando eu comecei a fazer os cursos no Alpendre, eu comecei a ver um caminho profissional, por mais que naquela época ainda não tivesse um mercado forte, por mais que ainda não tivesse as universidades, mas eu tinha ali um norte pessoal”, compartilha. 

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Kiko Alves teve sua passagem no Alpendre demarcada por um contato que se deu em condições semelhantes. Pouco tempo depois de encerrar o segundo grau, o cearense natural de Itapipoca decidiu vir morar na casa de sua tia em Fortaleza. Foi no ano 2000 que ele passou a viver na comunidade do Poço da Draga e começou a ocupar aquele lugar que seria o seu ponto de partida para o que viveria em seguida. “O Alpendre é fundamental para minha vida. Não era fácil ser jovem negro na década de noventa, não que hoje seja mais fácil, mas a gente não tinha perspectiva do ensino superior, então o Alpendre fez uma verdadeira revolução na minha vida”, recorda.

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“Naquele período em que a gente não tinha a Ancine e não tinha uma estrutura cinematográfica na cidade, o Alpendre era um dos poucos espaços que possibilitava a formação. O Alpendre e o Instituto Dragão do Mar”, opina Kiko. Com sua história iniciada também naquela década, o Instituto Dragão do Mar e Indústria Audiovisual do Ceará citado por Kiko também teve sua importância para quem se iniciava no audiovisual de Fortaleza na época. Apesar do pouco tempo de funcionamento (1996 - 2003), tendo sido desativado durante o governo Lúcio Alcântara, o Instituto representou um grande marco para o audiovisual cearense, pois esteve integrado a uma série de outras políticas públicas que tinham foco no desenvolvimento do mercado.

"Era muito importante pra comunidade do Poço da Draga que, por exemplo, que estava ali ao lado, uma instituição daquele porte, que desse suporte, que tivesse contato com a arte - uma coisa que, por exemplo, um equipamento gigante como o Dragão do Mar, um equipamento que tem todo um arcabouço do Estado, tem toda uma grana ali, tem tudo, pouco conversa com a comunidade que tá ao lado". (Victor de Melo)

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A CHEGADA DO SÉCULO XXI

Buscando a expansão do mercado, novos espaços de formação começam a ser pensados e estruturados

A necessidade de atender a uma demanda de formação em na área cresce em Fortaleza com a chegada do século XXI. O Alpendre acaba se tornando um modelo para se pensar um novo centro de formação que atuasse com diferentes programas formativos e tivesse o esse setor como um de seus pilares. Assim, é criado o Complexo Vila das Artes, um equipamento cultural vinculado à Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza, que abrigaria a escola de audiovisual de Fortaleza.

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A Vila das Artes surge com uma proposta de formação que quer pensar uma arte que dialoga com a cidade. O projeto se inicia ainda sem uma sede definida, com a turma-piloto do Curso de Realização em Audiovisual tendo aulas em diferentes espaços de Fortaleza. Após essa experiência da Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes, começam a se formar novos profissionais que vão contribuir com o crescimento desse mercado fortalezense, como é o caso de Victor de Melo. 

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Após estudar no Alpendre, Victor participou da primeira turma da Vila das Artes. “Eu fui da turma experimental. A gente, na verdade, foi a turma-piloto, então pra gente foi tudo mais diferente. Não consigo nem comparar com nada que venha depois, porque primeiro que a gente nem tinha sede, nossas aulas eram em vários lugares distintos”, relembra. Ali, fez  amizade com muitas das pessoas com quem compartilharia sua trajetória no audiovisual, inclusive, com aquelas com quem abriria a produtora na qual trabalha hoje - a Marrevolto Filmes.

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Segundo ele, o ensino da escola, para além do técnico, possibilitava também um acesso a diferentes visões de mundo. “Essa coisa da forma como é pensado o currículo, da forma como é pensada a grade curricular enriquece muito porque você tem várias visões, vários recortes daquilo que você quer tratar, por exemplo, na coisa da cidade”, explica. Foi esse modelo de aprendizado que o ajudou a fazer o audiovisual que faz hoje. “Acho que a Vila das Artes foi muito bom pra mim nessa coisa de referências, de a gente conseguir ter uma ampla visão de várias coisas com relação a vários temas”, complementa. É nesse sentido, e também a partir da sua relação com a fotografia e o seu lugar de origem, que Victor começa a realizar um trabalho que resgata as memórias de espaços da cidade ocupados pela sociedade.   

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A partir da Vila, começam a surgir, em Fortaleza, os primeiros cursos superiores de formação no setor - na Universidade Federal do Ceará (UFC) e na Universidade de Fortaleza (Unifor) - e começam a ser estruturados novos equipamentos culturais que buscam dar suporte ao audiovisual, como também a outras artes. É, nesse contexto que, após dez anos do encerramento de suas atividades, o Instituto Dragão do Mar ressurge na Escola Porto Iracema das Artes. Com essas novas opções, a cidade passa a ter mais possibilidades de caminhos para quem busca aprender sobre o campo. Ainda assim, são caminhos com acessos mais fáceis para algumas pessoas e mais difíceis para outras. 

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Inserido hoje no mercado após muitas dificuldades, Victor enxerga as condições desiguais de acesso ao ensino. “A disputa é muito desleal. Fora outras questões, às vezes a pessoa não tem dinheiro para uma passagem de ônibus pra chegar lá no Porto ou na Vila. Às vezes, o curso é à tarde e a pessoa precisa estar trabalhando”, exemplifica. Ele aponta também que o problema começa mesmo antes de o sujeito adentrar o circuito formativo em audiovisual. “Quando a gente fala em formação, ela não é uma coisa que vem somente da formação no Porto, Vila ou inclusive da universidade, ela é uma formação que vem da base”. 

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Além disso, ele faz uma crítica ao ensino que não contempla o estudo da escrita de projetos para inscrever em editais e acaba contribuindo para que sejam sempre as mesmas pessoas ganhando projetos. “A coisa do edital é um dilema para quem vem da base. Então por isso que é uma crítica que eu faço. Eu acho que falta nas instituições algo voltado para isso. Tem muita gente com ideia boa, mas que não consegue concretizar em palavras, em escrita, então acaba que fica muita gente que já tem o domínio ganhando os editais”.

 

Victor de Melo contrasta ainda as vantagens socioeconômicas da maior parte de quem busca se inserir no mercado com as dificuldades por que passam aqueles que não têm as melhores condições. “Tem uma discrepância. Isso, na prática, a gente vai vivendo, vai entendendo o quanto é difícil o audiovisual pra quem não tem grana, porque é um mercado difícil. É um lugar muito elitizado, 99% é gente que já vem com uma bagagem, já estudou nos melhores colégios, passou pela universidade federal, aí tá ali, e pra você disputar com isso, é muito difícil”.

 

Acerca da inserção no mercado, ele avalia a formação como sendo importante para tornar o setor uma possibilidade de profissão para as pessoas menos favorecidas e reforça o seu desejo de realizar cursos formativos nas periferias. “Eu penso muito nisso e é nisso que eu quero me engajar. Pensar uma formação básica para a periferia e tornar isso uma coisa acessível, as pessoas entenderem que isso pode ser possível”, compartilha.

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As dificuldades apontadas por Victor se confirmam na história de Joyce Sousa Vidal, que precisou desistir de alguns cursos ao longo de sua trajetória de formação para trabalhar. Ainda assim, o esforço da profissional da imagem, como ela mesma se intitula, foi maior que as barreiras que a impediam de conquistar o espaço que buscava no mercado. Com muita persistência - e com a ajuda do Fies -, ela concluiu a graduação em Audiovisual e Novas Mídias pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e conseguiu trabalhos na área.

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Nutrindo um gosto pelo campo artístico desde nova, especialmente pela fotografia, Joyce começou a fazer cursos antes mesmo de decidir qual rumo profissional iria seguir. Começou fazendo um curso de fotojornalismo na Rede de Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte, conhecida como Rede Cuca, ao mesmo tempo em que estudava fotografia na ONG Fábrica de Imagens. Posteriormente, já tendo ingressado na universidade, fez um curso na Vila das Artes e outro na Casa de Cinema. Depois, participou de uma formação pensada pela Marrevolto junto a alguns coletivos da cidade, tendo o seu caminho, inclusive, cruzado com o de Victor nesse período. 

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Em meio a essa jornada formativa, teve a chance de integrar a equipe do Porto Iracema das Artes como estagiária de fotografia e, posteriormente, como fotógrafa contratada. Assim, com uma câmera em mãos, foi aprendendo a capturar a cidade a partir do seu olhar e a usar suas dores em seu processo fotográfico - dores essas que eram, em grande parte, provenientes do racismo que teve de enfrentar, por diversas vezes e nos mais variados ambientes por qual passava, ao se reconhecer como uma mulher negra.

“Eu sofri muito racismo, desde que eu iniciei, e hoje eu entendo muito bem cada processo que eu passei, em cada instituição, seja como estudante, seja como profissional da imagem. Antes eu focava muito nisso e eu sofria muito, daí também vem a questão da dor da mulher negra, mas depois de um tempo, quando eu fui começar a procurar novos ambientes”

Vinda da periferia do bairro Carlito Pamplona, com muita dedicação aos estudos e ao seu trabalho, Joyce conseguiu se colocar em determinados lugares predominantemente ocupados por pessoas que considerava privilegiadas. Os anos de esforço e trabalho árduo renderam bons frutos para ela, que participou de festivais como fotógrafa e de produções audiovisuais na câmera ou na assistência de câmera, foi convidada a ser professora em cursos do Centro Cultural Bom Jardim e, mais recentemente, ganhou um edital para lançar um projeto fotográfico sobre as praias da periferia de Fortaleza.

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"Fortaleza é conhecida como a terra do Sol, mas também não é só isso". Para quem vem de fora visitar a cidade, talvez seja essa a imagem que fica, mas, para quem vive aqui, a cidade vai muito além.

NOVOS PERCURSOS FORMATIVOS

Quando o audiovisual chega à periferia, mais sonhos se tornam possíveis

O aprendizado do audiovisual é o começo de uma jornada que torna possível ser cineasta um dia ou fazer disso algo próximo de um ofício. Entretanto, é o começo de uma jornada que ainda não é totalmente acessível para todos. Isso porque, apesar das possibilidades de cursos de formação gratuitos, os contextos em que se encontram algumas pessoas podem  dificultar essa acessibilidade. Em Fortaleza, não é preciso um olhar muito atento para se perceber as diferentes realidades sociais e econômicas que coexistem na cidade e criam essas condições desiguais de acesso. 

 

Para quem é da periferia, as oportunidades de formação por si só não são suficientes para garantir que os jovens que acessam esses equipamentos consigam estudar essa linguagem efetivamente e acessar o mercado de trabalho do audiovisual, pelo menos é assim que avalia o professor Kiko Alves, que atuou como educador no processo formativo em audiovisual no Cuca Mondubim, um equipamento da Rede Cuca feito para dar oportunidades a jovens. “O acesso pelo acesso é bastante questionável, tu tem que pensar o acesso desse jovem, ele tem que acessar a formação, mas isso tem que se estender ao lugar, à comunidade. O Cuca do Mondubim é como uma escola, que tá lá, é murada, chega lá e tu tem acesso a um tipo de conhecimento e tu sai daquele muro de proteção, quando tu vai pro mundo, não tem mais”.

 

Os Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cucas), que compõem a Rede Cuca, atuam como iniciativas que visam a inclusão de jovens de 15 a 29 anos em diversas áreas, dentre elas no audiovisual. Mantidos pela Prefeitura Municipal de Fortaleza desde 2014, os Cucas se localizam nas periferias da cidade e oferecem uma formação e um incentivo à prática de atividades culturais e esportivas gratuitas. Atualmente, a Rede possui quatro equipamentos, localizados nos bairros Barra do Ceará, Mondubim, Jangurussu e José Walter.

 

Para o ex-educador da Rede, a política pensada para os Cucas é extremamente necessária, principalmente nos lugares onde a Rede atua, tendo modificado certo contexto social das periferias. Entretanto, essa política não garante que esses jovens que saem desses espaços tenham todas as ferramentas necessárias para continuar suas trajetórias no setor. “Quando eles saem do Cuca e voltam pra casa, eles têm a obrigação de contribuir com o sustento da família. Eles precisam trabalhar e encontrar meios de continuar existindo. Eles não vão ter acesso a câmera, talvez consigam comprar um celular, e aí depois que comprarem ou conseguirem uma câmera, vão ter que ter acesso a uma boa conexão, a literatura para poder pensar sobre isso, a tecnologias para finalizar seus filmes”.

 

Tendo em vista essa realidade, ele ensinava aos seus alunos a fazerem o que fosse possível com o que estivesse disponível. Foi esse o ensinamento que o jovem Wesley Guerreiro, 26, levou para a vida do tempo em que estudou com Kiko no Cuca. “A gente entra no Cuca, a gente vê aquele cinema gigantesco, aqueles computadores, aquelas câmeras incríveis, mas o Kiko sempre nos ensinou ‘Não se limitem a isso aí, tentem usar a ideia do cinema possível’, que é mesmo você não tendo nada, você pode fazer alguma coisa. Por exemplo, eu não tenho câmera, não tenho gravador de áudio, não tenho estúdio, não tenho iluminação, não tenho nada, eu só tenho o celular, mas mesmo com o celular eu consigo fazer o meu possível, o que eu posso fazer”, conta o ex-aluno. 

 

Como tantos outros jovens, Wesley alimentava desde a infância o sonho de estudar cinema. Buscando realizar um curso técnico para garantir um futuro profissional, certo dia ele foi ao Cuca Mondubim com um amigo e lá tomou uma decisão que alterou por completo a sua trajetória. “Quando eu cheguei à adolescência, que eu precisei correr atrás de emprego, eu fui atrás de um curso para melhorar no profissional. Fui atrás de um curso de informática no Cuca Mondubim. Quando eu cheguei lá, vi que tinha um curso de cinema. Foi aí que aquela paixão que eu tinha quando era pivete cresceu de novo”, lembra.

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Nesse espaço, Wesley teve acesso a conhecimentos teóricos e práticos do audiovisual e também foi incentivado a refletir sobre o seu contexto e sobre o que existia ao seu redor. Ao participar de um programa que falava sobre as periferias da cidade, o Conexões Periféricas, aprendeu na prática o impacto que o audiovisual poderia ter para a construção da visão de um lugar. “O Conexões Periféricas era muito bom porque a gente tinha a liberdade de falar sobre o nosso bairro, que é uma coisa que só a gente conhece, porque a gente vive ali, e a periferia é muito marcada como um local que não é seguro, que é violento, sujo e feio, mas a gente tentava mostrar o que tinha de bom na periferia: sobre os artistas de lá, a cultura, a história”, destaca.

 

À medida que foi aprendendo sobre audiovisual, Wesley foi se afeiçoando à área de edição, o que traria resultados positivos para ele. Quando, por razões pessoais, precisou se mudar para Horizonte e deixou de frequentar o Cuca, usou o tempo livre que dispunha para inscrever em festivais o curta que havia produzido em um curso de edição. “Quando ele entrou no Cine Ceará, na Mostra Olhar do Ceará, eu fiquei surpreso. Ele foi exibido lá, depois entrou em outros locais também. Eu coloquei ‘Lugar Nenhum’ como título porque eu achei que [o vídeo] não ia pra canto nenhum, porque eu fiz uma montagem de vários filmes colocando um olhar meu ali, mas nunca imaginei que ele fosse parar em tantos lugares”, conta.

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Wesley participa de momento de formação  com colegas da Rede Cuca. Imagem: Arquivo Pessoal/Wesley Guerreiro"

Apesar da mudança de cidade, a vontade de continuar estudando era tanta que Wesley resolveu tentar a seleção de um curso de edição no Porto Iracema das Artes. A experiência o ajudou a conseguir um trabalho como editor de vídeos em uma produtora local, mas as dificuldades cotidianas o fizeram desistir. Para além da distância que precisava percorrer de Horizonte a Fortaleza, Wesley também sentiu que havia uma diferença entre estudar e trabalhar na área. “Existe ali a diferença de um curso, porque no curso a gente tá ali para aprender, mas quando a gente vai pra uma produtora, que ali é um trabalho, a coisa é mais séria, mas eu tava bem ali, o que complicou foi mesmo a distância. Eu acho que se eu estivesse morando em Fortaleza e tivesse conseguido essa oportunidade, acho que teria dado certo para mim”, relata. 

 

A dificuldade de mobilidade, entretanto, não significou o fim da história de Wesley com o cinema. A partir de sua paixão por cineclubes, resolveu criar um cineclube online reunindo produções das quais ele e colegas do Cuca participaram e hoje alimenta o desejo de realizar uma sessão em uma praça para mostrá-los à comunidade. “Eu penso em um dia, se um dia eu tiver uma condição melhor ou se eu conseguir algum edital, fazer um cineclube em uma praça. Pegar um projetor, uma tela, uma caixa de som, um notebook e colocar a playlist que já tá feita para o pessoal assistir”, fala.

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Como Wesley, muitos outros jovens acabam por tomar caminhos diferentes do que gostariam. Outros, entretanto, mesmo com todas as dificuldades, conseguem se manter no setor de alguma maneira. A formação é importante como oportunidade para colocar novos agentes na cena audiovisual, mas fazer um curso na área não é garantia de permanência. O mercado ainda carrega os privilégios de classe e não há como dissociá-lo dos contextos social, político e econômico do lugar onde é feito. Nestas circunstâncias, fazer audiovisual na periferia pode ser um desafio.

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Morador do Bom Jardim, Wagner Júnior, 22, aceitou esse desafio. Integrando hoje o coletivo Bom Jardim Produções, ele teve seu primeiro contato com o audiovisual quando ainda estudava no ensino médio. Na época, o Coletivo do qual faz parte agora realizava um curso na sua escola. “Eu não tinha nenhuma noção de câmera e de que área o audiovisual focava, então quando o Josenildo e a Gislândia apareceram na minha escola com esse curso, eu fui fazer porque os meus amigos também estavam e conforme as aulas foram passando, eu vi que era uma coisa legal”, relembra. 

 

A partir do curso, ele e seus amigos realizaram curtas independentes ainda na escola e ele despertou para a possibilidade de buscar formação no setor. “Eu não tinha muita noção do que eu ia fazer depois da escola, eu não tinha uma meta ou objetivos. A escola era só fazer o Enem, entrar na faculdade, mas eu não sabia o que eu ia fazer. Então quando eles fizeram esse curso, eu abri os meus horizontes e vi que tinha um leque de opções e que realmente era um área que eu curtia, que eu gostava muito”, conta.

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Ao terminar os estudos, fez outro curso de audiovisual e teve uma nova experiência realizando o curta ‘Marcas’, junto ao Coletivo Bom Jardim Produções, que, para ele, foi um divisor de águas para sua trajetória. “ O curta me ajudou a me expressar. Eu consegui expressar todos os meus sentimentos de raiva e tristeza, tudo naquele curta. Eu não gosto de rever o Marcas, mas eu reconheço que ele foi o meu ponto de virada, do que foi a minha carreira antes e do que foi depois. Então o ‘Marcas foi esse ponto de virada que traçou os meus caminhos”, compartilha. 

 

Depois disso, passou algum tempo sem participar de produções, apenas estudando em casa, até que surgiu a chance de estudar no Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ) - um equipamento de arte e cultura gerido pelo Instituto Dragão do Mar (IDM), em parceria com outras instituições do bairro, como o Bom Jardim Produções. “Além de ser perto da minha casa, foi muito bom participar desse curso porque ele abriu ainda mais os meus horizontes, quebrou muita coisa na minha mente que eu tinha construído sobre o cinema e sobre o audiovisual de forma geral. Eu gostei muito dessa iniciativa que eles fizeram de colocar essa formação na periferia porque a gente mal tem essas opções”, fala. 

Hoje, entretanto, ele percebe o quanto o audiovisual tem crescido no seu bairro e a relevância que isso tem tomado para tornar possível esse sonho de trabalhar na área que parecia tão distante antes. “Quando eu comecei a fazer o curso no Centro Cultural, eu não tinha noção do quanto a juventude tava querendo estar nesse ramo. Eu achava que eu era o único, que eu era o diferentão porque eu estava querendo fazer audiovisual na periferia, mas não. Tem muita gente com muitas ideias lindas querendo fazer suas produções e só querem uma ajuda. Então eu vejo que o audiovisual aqui no bairro já tá crescendo de maneira considerável, as pessoas já estão notando isso”, avalia.

 

Enxergando o poder de gerar identificação, de emocionar e de transformar histórias que o audiovisual carrega, ele fala sobre a arte que busca realizar. “O que eu quero é que as pessoas se identifiquem vendo os meus filmes, que as pessoas falem ‘nossa, ali é a mercearia onde eu compro, nossa, é ali onde eu corto o cabelo’. É bem legal ver essa interação, mostrar que aqui não tem só violência, que aqui também tem histórias lindas e gente que conquista seus sonhos. Então, eu quero sempre colocar esse ar realista, mas sempre botando um pé no ‘ó, você consegue se você não desistir’, partilha.

 

Para Lívia de Paiva, que esteve à frente da coordenação de audiovisual do CCBJ de julho de 2019 a junho de 2021, o equipamento é “um espaço potente de pesquisa, criação e de sobrevivência dos artistas”. A realizadora audiovisual destaca o papel transformador do ensino do audiovisual nesse lugar. “O CCBJ foi escola também pra mim, é de você pensar como o audiovisual e a educação têm potências muito similares, de serem ferramentas pedagógicas de leitura do mundo, do pensamento, de quebra de estigma, de empoderamento por meio de narrativas de corpos e de formas de existir invisibilizados”, fala.

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"A formação vem da base". Ainda que as oportunidades de acesso a formação em audiovisual fossem as mesmas para todos,alguns sujeitos estariam mais bem preparados  porque o acesso ao ensino de base foi diferente e não é possível dissociar a formação dos contextos social, político e econômico de cada .

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