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Escutando moradores e gerentes de um antigo hotel de Fortaleza, Tiago Pedro Pereira produziu o curta “Um Lord Abandonado” (2009) a fim de resgatar parte da memória e misturar o real com fantasia

Por Beatriz Rabelo

Os passos ecoam pelos corredores vazios e as rachaduras já conseguem ser vistas pelas paredes. Os vitrais coloridos criam formas quando o sol começa a se pôr, enquanto muitos caminham alheios aos mais de 120 apartamentos abandonados no edifício Lord Hotel, fundado em 1956. Os quartos carregados pela energia do passado ainda guardam os segredos de seus hóspedes, as esquinas lembram das corridas realizadas por crianças pequenas que brincavam por seus corredores, e o saguão em ruínas mantém o rigor da recepção realizada para cada viajante que chegava. 

 

O prédio localizado logo ao lado do Theatro José de Alencar, no centro de Fortaleza, surgiu em meio ao movimento de implantação de indústrias no Ceará, com a construção de edifícios com mais de três andares. Conforme informações do Mapa Cultural do Estado, na época, foram fundados diversos hotéis, como o Excelsior Hotel, em 1931; o Hotel Iracema Plaza, da década de 1950, e o Lord Hotel. Neste último, os hóspedes mais frequentes eram os viajantes, turistas e caixeiros, pessoa responsável por transportar e entregar mercadorias em domicílios.  

Apesar de ser um dos símbolos de Fortaleza, o prédio quase se apaga no olhar habituado e corriqueiro do cotidiano. Quantas vezes você foi até a feira que acontecia na frente da Estação de Metrô José de Alencar? Quantas tarde, depois de pegar o ônibus que percorre a Avenida Tristão Gonçalves, você desceu na parada após a igreja e percorreu o caminho até a praça da Estação, dobrando em uma esquina sempre apinhada de gente e cabides, com vendedores oferecendo água e lonas alaranjadas lhe protegendo do forte sol de meio dia? 

 

O muro cinza pouco chama a atenção, mas o prédio resiste. Desbotado, alto e abandonado. O letreiro “Lord Hotel” permanece no alto, mas são poucas as cabeças que se erguem para olhar a fachada. Então, nadando contra a corrente do fluxo de transeuntes apressados, o fotógrafo documentarista Tiago Pedro Pereira, 34 anos, foi um dos sujeitos que se aventurou a erguer o olhar para a estrutura em formato de barco, baseado no estilo arquitetônico Arte Decó.

 

“Eu olho para aquele prédio e é enorme, mas ninguém vê. Um personagem invisível no centro da cidade que ainda tem seu nome ‘Lord’, lá em cima. Quando eu fui para lá, quis saber a história do prédio e, quando você quer saber a história de um edifício, você vai atrás do dono, das pessoas que trabalharam lá…”, detalha o cearense vindo da região do Cariri, ao relembrar os primeiros passos da produção do que viria a ser o curta-metragem “Um Lord Abandonado” (2009).

 

Realizado por meio da convocatória “Fortalezas”, do Núcleo de Produção Digital da Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes em comemoração aos 283 anos da capital cearense, o curta fez parte do total de doze filmes inseridos no edital. As produções apresentaram histórias baseadas em fatos reais, de personagens e lugares cujas singularidades se configuram em formas criativas de reinvenção da vida, do cotidiano e da cidade.

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A partir da curiosidade pela história do edifício, Tiago Pedro buscou a então proprietária Beatriz Rosita Gentil Philomeno Gomes, que faleceu em maio de 2021 aos 97 anos. “Ela ainda estava viva e falou ‘Olha, meu filho, eu nem me lembro desse prédio. Aquele negócio velho, quero saber não, mas vou lhe dar o endereço do gerente’”, recordou o documentarista em meio ao resgate de sua própria trajetória para a construção dos curtas. 

 

Depois daquela visita, seguiu a trilha de recomendações até chegar nas cinco pessoas que ainda trabalhavam no prédio e que possuíam uma relação afetiva com o lugar. “Esse foi o meu grande clique. Percebi que as pessoas menores tinham muito a dizer, mais histórias para contar e contavam melhor do que os donos ou outras pessoas históricas”. 

 

No curta, escutou os ex-gerentes Mário e Maria Otacília Bezerra de Menezes, assim como os moradores Franco Marques, Ivoneide e Francisca Soares. Todos os que viviam no local carregavam pelo menos uma década de memórias do Hotel. 

 

Olhando para a produção realizada há 12 anos, o cinematógrafo formado na Escuela Internacional de Cine y Televisión de Cuba sente arrependimento pela escolha de ter utilizado tanta fita nas entrevistas dos gerentes. “Comecei do lugar errado achando que ia dar em alguma coisa, mas nem deu. Depois eu gravei várias cenas do prédio degradado e conversei com duas famílias. Eram uns velhinhos tão gente boa, se eu soubesse, teria feito só com eles…”

 

As filmagens do hotel apresentam a janela com vista para a Praça José de Alencar e uma banca de jornal, as rachaduras na estrutura, salões em ruínas, assim como o letreiro do topo do prédio.

“Me lembro da tristeza dos moradores. Imagina o tamanho do prédio hoje e só moram cinco famílias. O prédio estava todo abandonado e o povo invadia. Tinha um dos moradores que era tipo um zelador, que cuidava do prédio, porque era o prédio onde a família dele morava, mas ele não ganhava nada para isso e era um lugar grande, vazio, com uma energia pesadíssima”

Essa noção de que algo permanece mesmo após a partida dos sujeitos aparece também em sua narrativa, quando figuras fantasmagóricas passeiam pelos corredores vazios. Risadas surgem ao fundo de imagens que por alguns segundos mostram cenas casuais realizadas por antigos hóspedes antes de ser cortada, no momento seguinte, para o salão vazio. Ainda que as vidas passem, os edifícios ainda carregam o peso e as histórias daqueles que por ali passaram. “Às vezes, essas histórias do passado não estão presas no passado, elas vivem e nos atravessam hoje”.

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O  hotel compõe a paisagem do centro de Fortaleza como personagem quase invisível. Foto 1 e 3: Beatriz Rabelo | Foto 2 e 4: Reprodução/ Curta "Um Lord Abandonado"

NARRATIVAS QUE ENTRELAÇAM

Com carinho na forma de relembrar sua trajetória no cinema e na fotografia, Tiago Pedro não titubeia em afirmar que foi a partir das histórias contadas pelo seu avô que surgiu o amor pela sétima arte. O patriarca era morador do povoado com cerca de 300 pessoas intitulado Sítio Lagoa da Pedra e foi no alpendre da casa quase esquecida entre Juazeiro do Norte e outras cidades da região do Cariri, que o jovem aprendeu a fazer cinema. “É aquele lugar quase um livro do Ariano Suassuna. Lugar pequenininho, com um bêbado oficial e 'rezadeira'”. 

 

“Quando eu ia para a casa dele, que era uma casa que não tinha eletricidade nem nada, a gente passava o dia no alpendre contando e ouvindo histórias. Era dessa forma que a gente sabia as notícias, ficávamos sentados e as pessoas passavam informação. Hoje eu digo que faço cinema como se estivesse no alpendre da casa do meu avô”. 

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Com raízes no sertão do Cariri, Tiago carrega sempre a lembrança dos antepassados e de suas origens.

Imagem: Divulgação/ Tiago Pedro

Foi também da região do Cariri que nasceu a semente do interesse pela pintura, fotografia lambe lambe, cordel e até pela forma do sertanejo de contar histórias. A relação da história oral, que narra a realidade a partir de uma outra ótica, ajudou a motivar sua produção do "Lord Hotel". Gostava de construir narrativas poéticas capazes de misturar o real com o sobrenatural, traço este que está presente no curta sobre o antigo prédio da cidade. 

 

Do alpendre para cá, a formação de Tiago foi construída de forma plural. Iniciando as primeiras aulas de cinema na 2ª turma do Vila das Artes em Fortaleza, em 2009, mudou-se para Cuba, em 2014, a fim de aprender na Escuela Internacional de Cine y Televisión de Cuba. Posteriormente, cursou um ano no Centro de Capacitación Cinematográfica no México, precisando retornar ao Brasil em decorrência de complicações burocráticas com o visto.  

 

Ao longo de seus muitos anos de estudo, hoje vê o cinema como uma ferramenta capaz de resgatar aspectos da cidade já não existentes, como seus lugares e figuras históricas. 

“Se você não conhece as histórias de um lugar, não tem como gostar desse lugar, não tem como criar uma relação afetiva com ele. A não ser que as histórias que você tenha com esse lugar, sejam as histórias que você criou, que você viveu, mas ajuda muito saber que a cidade se torna um pouco mais humana quando você sabe quem morou ou está morando em cada lugar”

O cinema possibilita justamente esse relembro, aberto para os distintos processos criativos. No caso de Tiago, a sua forma de contar a história surge através do passeio pela cidade. Com um rolo de filme analógico para câmera, fotografa cuidadosamente cada imagem disponível. A partir daí, imprime as fotos preferidas, escreve sobre elas e começa a realizar o roteiro. 

 

Tem um negócio meio flâneur, de deriva, mas depois eu escolho um lugar e crio limitações. Nisso que me delimito, tem a deriva. Faço filmes e ensaios. O acaso, inclusive o erro, pode ser bom. Se a minha expectativa é quebrada, posso colocar meu erro e essa minha expectativa quebrada no filme”, compartilha. 

 

É dessa forma, aberto para os acasos que a cidade pode oferecer, que Tiago segue voltado produzindo, investigando, fotografando e contando suas histórias. A veia artística latina segue pulsante, acolhedora para o muito que ainda há para ser construído.  

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