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Atentos em construir narrativas que apresentem outros olhares sobre a violência, a periferia e o assédio em Fortaleza, os produtores audiovisuais Wagner Ricardo e Bárbara Cabeça resgatam a potência do cinema em contar as histórias de distintos corpos na cidade

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Por Beatriz Rabelo

Ao meio dia, a TV ligada ecoa narrativas de violência que reforçam a insegurança de habitar a cidade, principalmente os bairros mais periféricos. Sem qualquer preocupação ética com o discurso proferido para milhares de telespectadores ou respeito às dores das mães enlutadas pela morte dos filhos, alguns programas policialescos constroem seus espetáculos à custa do sangue e das vidas de uma juventude que, por direito resguardado pela Constituição de 1988, deveria ter tido a possibilidade de sonhar, construir e crescer. 

 

No entanto, parte dos jovens entre 10 a 19 anos acaba inserida nas estatísticas de morte do governo estadual. Em 2020, conforme Relatório do Comitê de Prevenção e Combate à Violência da Assembleia Legislativa do Ceará, foram registrados 286 assassinatos desse grupo somente de janeiro a abril, representando uma média de quase 17 mortes por semana, fechando o ano com cerca de 646 meninos e meninas mortos no Ceará nessa mesma faixa etária.

 

Já neste ano de 2021, durante os primeiros seis meses, 264 adolescentes de 10 a 19 anos foram vítimas de violência letal no Estado. Conforme a Nota Técnica do Relatório Cada Vida Importa, divulgado no segundo semestre de 2021, “a cada um dos 181 dias entre janeiro e junho, mais de um adolescente perdeu a vida, deixando família, amigos, sonhos e projetos interrompidos”. Esses jovens representaram 16,51% das 1.599 mortes contabilizadas no recorte de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) do Estado. 

 

Mas a juventude de Fortaleza é muito mais do que os dados, estatísticas e discursos de violência. Partindo do desejo de construir outras narrativas sobre os adolescentes periféricos, de humanizar a forma de lidar com os homicídios ocorridos entre colegas e de resgatar potencialidades da arte, o morador do bairro Bom Jardim e produtor audiovisual, Wagner Júnior Ricardo, 22 anos, começou a fazer uso do cinema para escrever, da sua maneira, a visão da periferia

 

Em uma das produções que participou, o curta-metragem “Não Pare de Sonhar” (2018) abordou o assassinato da juventude em uma narrativa marcada por afeto, cuidado e acolhimento. 

Resgatando o processo de luto dos estudantes após a morte de um dos colegas de classe, a produção de 19 minutos baseada em uma história real acompanha o apoio dado à protagonista Sofia após perder seu melhor amigo, Flávio. Incluindo relatos de vivências dos estudantes, o filme acabou por transformar a vida em arte, ao trazer também a música que Sofia compôs em homenagem ao amigo vítima de violência.

 

“O curta fala muito sobre a violência, mas a gente não precisa mostrar ela. Só falamos sobre ela. Aí, no dia em que a gente foi exibir o ‘Não Pare de Sonhar’ no Cine São Luiz, tinham mães e adolescentes chorando, tudo porque já perderam amigos e irmãos por conta da violência. Nesse momento eu vi que a gente realmente pode mudar as pessoas, pode fazer elas refletirem”.

 

Com cuidado e profissionalismo, Wagner começou a tentar criar produções capazes de negar o discurso centrado somente na violência para mostrar que a periferia também é espaço de apoio, criação, arte e resistência. Com a câmera e um roteiro, o integrante do Coletivo Bom Jardim Produções apresenta a Fortaleza os outros modos de ver a periferia. 

“Quero que as pessoas se identifiquem vendo os meus curtas, que falem: ‘nossa, ali é a mercearia onde eu compro, ali é onde eu corto o cabelo’. É bem legal ver essa interação, mostrar que aqui não tem só violência, tem também histórias lindas, gente que conquista seus sonhos…”

Para ele, é do cotidiano e das próprias vivências que surgem os materiais de construções dos filmes. Por isso que às vezes se vê incomodado com narrativas realizadas sobre o Bom Jardim. “Não é legal você ver pessoas que nem moram no seu bairro falando dele, dizendo coisas que você sabe que não é assim. O pensamento de pessoas de outros bairros para a gente da periferia é um pouco distorcido, até meio caricato”. É, então, das produções periféricas independentes que Wagner tira forças para seguir produzindo. 

 

Focado em construir projetos capazes de semear sonhos, Wagner se debruça sobre a capital cearense, esmiuçando que para além da Terra do Sol, também é uma cidade das periferias, de lados que nem sempre ficam evidentes. “Fortaleza é mais que a Praia de Iracema por exemplo, é mais do que a Aldeota, tem muitos bairros que compõem Fortaleza e a gente quer ser ouvido também. Queremos estar nesse meio e aqui não tem só coisa ruim”.  

DESLOCAR O OLHAR PARA REPENSAR SÍMBOLOS E OCUPAÇÕES

Assim como Wagner Ricardo, a realizadora audiovisual Bárbara Cabeça, 27 anos, também usou o cinema para abordar uma problemática cotidiana a partir de uma outra visão. Acostumada a andar pelas ruas, sentia o assédio como uma figura constante em suas caminhadas pelo Centro quando se tornou estudante de cinema na Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2012. 

 

Oriunda do interior de São Paulo, mudou-se para as ruas próximas da Avenida Domingos Olímpio. Devido à proximidade com o centro, costumava ir a pé até a Praça do Ferreira ou ao Parque das Crianças, sentar em bancos para escrever os trabalhos da faculdade e depois almoçar em algum restaurante aberto. Cada saída era marcada por um novo descobrir de ruas. No entanto, independente do que estivesse usando, o assédio era uma variável permanente.

“Me incomodava muito e começou a ser uma coisa que estava me inquietando demais. Essa violência vai cansando, porque você tem que andar já sabendo que vai acontecer, pensando estratégias para não passar por isso”

Apesar de todas as estratégias criadas a fim de reduzir o assédio vivido nas ruas, continuava escutando buzinadas, vendo olhares lascivos e até ouvindo “coisas mais pesadas”.  Dessa vivência, surgiu o questionamento sobre o porquê de não conseguir andar na rua sem passar por essa situação. E por que sempre havia relatos de outras mulheres que também já tinham vivido algo parecido?

 

Foi seguindo essa linha de ponderações que decidiu utilizar a linguagem audiovisual para tentar construir uma narrativa capaz de acender questionamentos similares em outros públicos. Ocupar e viver a cidade é um direito por vezes violado, em que alguns corpos sentem essa falta com mais força no cotidiano. “Queria trazer isso para o cinema. Trocar, pensar, construir e pensar cenas que pudessem trazer essas discussões dentro do espaço público, da rua”. 

 

Com o apoio de outras mulheres, começou a produzir o curta-metragem “Boca de Loba” (2018). Sentadas, liam trechos do livro “Mulheres que correm com os Lobos”, da escritora, Clarissa Pinkola Estés, compartilhavam as vivências de assédio e criavam um espaço de cura coletiva. “Uma discussão que surgiu durante o processo foi como falar sobre a violência na rua sem personificar ou reproduzir as imagens”. 

 

Cansada de filmes que mantêm a mesma estrutura da violência, Bárbara optou por se aprofundar no campo do simbólico, uma vez que percebe a cidade como uma estrutura  já carregada de figuras masculinas: os nomes das placas, bustos e estátuas, até o próprio som de carros e motos passando. 

“Os homens são muito presentes na rua. Eu ficava observando e às vezes percebia ‘sou a única mulher aqui’. É uma coisa que parece pequena, mas na verdade vai puxando para um monte de outras que apontam para símbolos muito grandes”.

Cenas do curta "Boca de Loba", com mulheres ocupando a Fortaleza noturna. Imagem: Reprodução/Curta "Boca de Loba"

Trazendo um tom carregado de fábula e "contação" de história oral, Bárbara constrói o seu filme a partir da narrativa de mulheres que durante o dia trabalham e de noite se encontram como figuras distintas. Quando o sol se põe, tornam-se mulheres mais resistentes, que encontram refúgios nos ninhos construídos por mãos femininas em bueiros e bocas de lobo. Atentas, juntas e fortes, tomam conta da cidade à noite, “fazendo suas magias”. 

 

O curta de 18 minutos se constrói com atrizes de vivências e corpos diversos. Mesclando trechos do livro "Mulheres que correm com os Lobos” na própria narrativa do filme, apresenta um figurino quase pós-apocalíptico, com máscaras nos rostos e roupas rasgadas. 

 

“No espaço do filme que elas vivem debaixo da terra, usamos a parte debaixo da catedral. Deixaram a gente fazer o que quisesse e a referência do cenário foi a forma como algumas mulheres transexuais encarceradas usam os tecidos para arrumar as celas”, apontou em meio ao resgate do denso processo de pesquisa para criar o universo. 

 

Mostrando o Centro pela noite, focam nos símbolos que se espalham pelo bairro, chegando a prender uma corda em todo de um dos bustos encontrados. “A grande intenção do filme é deslocar o olhar para repensar esses símbolos. Acho que acabou ficando muito mais sobre isso do que sobre o assédio, mas cada um vai sentir o filme de forma diferente”. 

 

Da experiência, talvez um dos momentos mais marcantes foi quando começou a mapear o bairro pela noite. Se durante o dia o espaço era marcado por intensa movimentação de pessoas, percebeu que a noite era reservada ao silêncio e à liberdade. “Não sentimos a mesma coisa que durante o dia. Foi surpreendente, mas a noite era até mais acolhedora, porque era só a gente ali, um grupo caminhando no centro da cidade…”.

 

Dessa ocupação noturna em bando veio o fortalecimento para conseguir encarar as ruas e ocupar a cidade. “A mensagem é um pouco essa, de não deixar de sair. A sensação é de ‘vamos, vamos, porque a gente tem que estar mesmo’. Porque agora essas mulheres estão juntas. Não estão sozinhas”. 

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Professor do Coletivo Bom Jardim Produções reforça a importância da sétima arte para criar novos caminhos à juventude

É com os olhos brilhando e empolgação na voz que Josenildo Nascimento e Gislândia Barros, com respectivamente 43 anos e 31 anos, confessam: desde a infância sonham em levar formação em cinema e audiovisual para jovens periféricos do bairro Bom Jardim, em Fortaleza. Casados há mais de uma década, os artistas e fundadores do Coletivo Bom Jardim Produções ensinam os fundamentos da sétima arte para jovens e adultos, produzem filmes, e compartilham os conhecimentos aprimorados desde 2008 para a juventude do bairro. 

 

Nessa luta para partilhar saberes e possibilitar outros caminhos de vida aos jovens através da arte, o acesso à formação segue como o principal desafio. Apesar disso, buscam encontrar soluções. Por isso, se um grupo de 15 estudantes precisa entender melhor a construção de um roteiro, inscrevem um ou dois alunos nos cursos gratuitos do Porto Iracema das Artes, Centro Cultural Bom Jardim ou em um dos realizados nos Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cucas) para que lá possam aprender com profissionais especializados na área e, posteriormente, compartilhar o conhecimento adquirido com o grupo. 

 

Se nesse processo, o dinheiro da passagem de ônibus for uma outra dificuldade, Josenildo e Gislândia chegam a tirar verba do próprio bolso para garantir o acesso do jovem ao centro de formação. Os professores são categóricos: “a ideia é que todo o coletivo aprenda”.

 

“Porque às vezes vem uma galera que faz um cinema mais filosófico que só valoriza a estética e os jovens acabam não entendendo como funciona o cinema comercial. A minha ideia é formar o pessoal daqui para que eles saibam os dois: comercial e filosófico”, assim compartilhou Josenildo, ao desenrolar o fio narrativo de sua trajetória como professor no Coletivo.

 

Plantando esses conhecimentos no bairro, busca colher novos frutos. Quer evidenciar outras perspectivas de caminhos que podem ser tomados pelas crianças e adolescentes, criar um senso de coletividade e, também, ser resistência frente a violência e o abandono vivido pelo Bom Jardim.

“Eu vejo os coletivos que atuam na comunidade como uma potência para resistir contra essa onda de violência. A gente faz um recrutamento oposto ao que está sendo feito por fora. Ao invés de recrutar para grupos criminosos, damos acolhimento pela arte. O jovem se sente parte de algo e isso acaba fazendo com que ele veja outras possibilidades de futuro”

Essa ação possibilita que a chama da esperança de outros futuros, que fujam da curva de estatísticas de morte, siga crepitando em meio a um túnel mal iluminado. E ainda que a estrutura não pareça ter fim, Josenildo e Gislândia seguem como sonhadores capazes de enxergar a luz que há no final. Como Eduardo Galeano, que vê a utopia nos passos dados em direção à linha do horizonte, os fundadores do Coletivo Bom Jardim Produções seguem caminhando, pouco a pouco, para mostrar que um outro amanhã ainda é possível. “Quero que vejam ‘eu também posso, não vou desistir, vou continuar’”, reforçou Josenildo. 

 

Com a motivação em construir coletivo, já somam muitos integrantes no Coletivo Bom Jardim Produções, contabilizando mais de mil jovens que passaram pelos cursos facilitados por Gislândia e Josenildo. De crianças com 5 anos até idosos, mantêm os braços abertos para a diversidade, tratando sobre temáticas como juventude, violência, suicídio e assédio. 

 

A liberdade de criação é sempre prezada. Quando resgataram o caso de um homicídio na juventude durante a produção “Não Pare de Sonhar”, por exemplo, Josenildo deixou que os meninos e meninas construíssem o roteiro a partir de suas vivências, incluindo o luto, o carinho, a saudade e o apoio entre os jovens na trama. 

 

“O que eu vejo é que enquanto tem uma mídia com turbilhão de informações dizendo que o Bom Jardim só tem ladrão, só tem coisas ruins, as pessoas aqui ainda namoram, vivem, estudam, tem fé e almejam coisas para a vida delas. A vida continua, ainda tem flores”. 

 

Por isso, durante suas aulas, busca mostrar a beleza e a potência da periferia para os jovens. “Eles têm um olhar bastante negativo do espaço em que vivem. Falam mal, dizem que ‘aqui não tem nada’. Mas depois do exercício com a câmera, são eles mesmos que, foram atrás das imagens, que começam a ver. ‘O que tem de diferente aqui, galera?’’, pergunto. ‘Professor, não tem nada’, mas quando voltaram, perceberam: a feira é viva, as pessoas brincam lá, os caras trabalhando aqui…” O bairro é potente e a criação do cinema a partir de suas perspectivas evidencia isso.

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Colagens produzidas a partir de fachadas de prédios e residências de Fortaleza. Crédito: Beatriz Rabelo.

“O Bom Jardim não é o que a galera mostra aí, não é assim. Você não sai na rua com medo de levar uma bala na cara. Eu adoro a minha rua. Tem jovens nas calçadas, pessoas conversando, cachorro passando...nunca vi um problema na rua. Existem pontos de maior violência, assim como também existe no Meireles, na Aldeota. Aqui no Bom Jardim do mesmo jeito”. 

 

Após atuar na área por mais de treze anos, Josenildo percebeu que o maior produto não são as produções, mas o ato político de transformar os olhares sobre o espaço e as formas de ocupar. “São também os jovens envolvidos em arte, porque quando a gente mostra nossa rua, nosso jeito de viver, estamos mostrando o nosso mundo através da janela do cinema”.

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 Crédito das colagens: Beatriz Rabelo.

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